Artigo publicado originalmente no site Valor Investe, elaborado por Camila Affonso e seu time de consultores do Leggio Group, em parceria com o colunista Carlos Heitor Campani.
Neste artigo, coescrito com Camila Affonso, sócia do Leggio Group, e o seu time de consultores, vamos aprender o que são títulos CBIOs e entender o funcionamento do programa RenovaBio, sob o contexto da transição energética nacional. Além disso, exploraremos o impacto que esse programa gera nas distribuidoras e, consequentemente, nos consumidores.
O tema é ao mesmo tempo relevante e específico, motivo pelo qual trago para esta coluna a parceria com o time Leggio, especialistas no tema e no setor.
No início deste mês, diversos veículos noticiaram que a Vibra (VBBR3) e a Ipiranga, empresa do Grupo Ultra (UGPA3), estariam interessadas em questionar juridicamente alguns pontos do RenovaBio, principalmente a respeito da obrigatoriedade de compra de CBIOs. Mas o que é o programa RenovaBio, o que são estes CBIOs e qual o impacto financeiro nas empresas do setor?
Para responder a essas questões, precisamos dar um passo atrás e voltar ao acordo de Paris, adotado em 2015 durante a COP21. Este foi responsável por muitas das ações globais recentes voltadas à sustentabilidade e descarbonização. O objetivo do acordo foi firmar um compromisso global para conter o aumento de temperatura terrestre em até 2°C, quando comparado a níveis pré-industriais. A principal ação trazida em COPs mais recentes foi o afastamento do uso de combustíveis fósseis, limitando a emissão de gases de efeito estufa.
Nesse contexto, o Brasil se autoimpôs diversas metas e diretrizes para se adequar ao compromisso firmado em 2015. Entre elas, se destaca a Política Nacional de Biocombustíveis, também conhecida como programa RenovaBio. Esse programa, apresentado a partir da Lei n°13.576, de 26 de dezembro de 2017, tem dois objetivos principais:
Aumentar a contribuição de bioenergia dentro da matriz energética brasileira, com o uso de biocombustíveis como etanol e biodiesel;
e aumentar a previsibilidade da demanda destes biocombustíveis, contribuindo também para sua competitividade.
O principal mecanismo trazido pelo RenovaBio para atingir seus objetivos é a utilização dos chamados CBIOs: títulos de crédito de descarbonização (ou apenas créditos de descarbonização). Um CBIO equivale a um título lastreado a uma tonelada de CO2 que será evitada com a produção ou importação de biocombustíveis.
O mecanismo funciona de forma compensatória, de modo que a venda de combustíveis fósseis subsidie a produção de biocombustíveis. Desta forma, CBIOs podem ser emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis, ao passo que devem ser comprados por distribuidoras de combustíveis fósseis. Assim, há um benefício financeiro para quem produz ou importa biocombustíveis (ao passo que há uma penalização financeira para quem distribui combustíveis fósseis).
O processo de autorização para emissão e validação das notas fiscais que possibilitam a emissão de títulos CBIOs é feita pelos produtores e importadores de biocombustíveis junto à ANP - Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Obtida a documentação, os emissores devem contratar um escriturador (banco ou instituição financeira habilitada) para realizar a emissão dos CBIOs e então trazê-los a registro na B3, onde poderão ser negociados livremente.
Anualmente, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estipula uma meta de CBIOs que devem ser aposentados, ou seja, retirados de circulação pelas distribuidoras de combustíveis.
Aposentar um CBIO significa retirá-lo também do balanço patrimonial, o que garante o mecanismo de penalização financeira. A existência de títulos CBIOs (em vez, por exemplo, de uma simples multa ou algo parecido) é fundamental para a formação do mercado secundário na B3, o que traz liquidez, transparência e maior eficiência de preços para esses títulos.
A meta de aposentadoria de CBIOs é estipulada com abrangência nacional e cada distribuidora deve aposentar CBIOs proporcionais ao seu market share. O não cumprimento das regras do RenovaBio acarreta multas para as empresas. Assim, para atender as metas do CNPE, a distribuidoras devem adquirir os CBIOs gerados pelos produtores e importadores de biocombustíveis para então aposentá-los.
Entretanto, as metas estipuladas em 2018 para redução de emissões utilizavam uma série de premissas que se mostraram mais otimistas do que a realidade apresentou ser. Fatores como a recessão econômica causada pela pandemia do Covid-19, a alteração na tributação de combustíveis e a guerra na Ucrânia, causaram um desalinhamento entre as premissas da modelagem e o consumo efetivo de combustíveis.
Nesse sentido, o Ministério de Minas e Energia realizou uma atualização na modelagem com as premissas adequadas para a realidade de 2023/2024. A partir destes resultados observou-se que as metas de CBIOS estavam em média 40% maiores daquilo que seria adequado, segundo dados do Ministério. Assim, para o ano de 2024 já foram adotadas novas metas com menores ambições ambientais. Veja o gráfico abaixo:
Para entender o impacto desse programa nas distribuidoras, vamos usar como exemplo a empresa Vibra e o Grupo Ultra. A Vibra é a distribuidora com maior participação no mercado brasileiro e, consequentemente, a maior responsável pela compra e aposentadoria de CBIOs. Apenas em 2023, aposentou um total de 10,2 milhões de CBIOs no ano, a ANP. Esse montante representou 27% da meta total estipulada pelo CNPE de 37,5 milhões em 2023.
Para atender às metas determinadas, a empresa arcou com um custo de R$ 1,46 bilhões no ano passado, segundo seu relatório de demonstrações financeiras de 2023. Para se ter uma ideia da magnitude deste valor, o lucro líquido da empresa em 2023 foi de R$ 4,77 bilhões (ou seja, cerca de apenas 3 vezes o valor de aquisição de CBIOs).
Ademais, a operação de compra dos CBIOs por parte das distribuidoras também gera outros custos indiretos além do custo de aquisição, tais como custos administrativos com as operações e aposentadorias, custos de transação e aumento da necessidade de capital de giro.
Por sua vez, a Ipiranga, que disputa o segundo lugar em termos de participação no mercado nacional com a Raízen (RAIZ4), teve meta individual de 7,05 milhões de CBIOS para o ano de 2023.
O Grupo Ultra, detentor da Ipiranga e de outras distribuidoras, teve um custo total de R$ 790 milhões com aquisição dos títulos de crédito de descarbonização no ano passado. Esse custo também foi relevante para o grupo, que alcançou um lucro líquido cerca de apenas 3 vezes esse custo (R$ 2,5 bilhões), proporção muito semelhante ao caso da Vibra.
O reajuste das metas proposto pelo Ministério de Minas e Energia reduzirá em aproximadamente 28% a necessidade de compra de CBIOs no mercado pelos próximos 10 anos, em comparação com as metas anteriores. A redução da meta de CBIOs também pode beneficiar as empresas pela menor demanda pelos títulos, o que pressiona o preço do crédito para baixo. Por sinal, este preço havia aumentado significativamente em 2023 e já apresenta quedas substanciais neste ano, como observado no gráfico abaixo.
A redução das metas de aposentadoria de CBIOs foi um passo necessário, pois garante metas atingíveis e mantém a chama da transição acesa. Entretanto, não podemos esquecer que essa redução pode causar dificuldades ao Brasil para cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris, na medida em que força os preços de CBIOS para baixo (como vimos no gráfico acima) e, portanto, reduz a atratividade do setor de produção e importação de biocombustíveis.
Políticas de crédito de carbono também são utilizadas em outros países. A diferença está, principalmente, na abrangência dos setores que se submetem às metas de descarbonização. Enquanto no Brasil o seu uso ainda é restrito ao setor de combustíveis, em outros países o setor industrial (e por vezes alguns outros) também entra(m) na regulamentação. Essa pode ser uma saída interessante para nós.
Concluímos que os CBIOs são instrumentos fundamentais da política nacional de transição energética, o que, por sua vez, se traduz em um passo importante rumo a um meio ambiente sustentável. Entretanto, não há dúvidas de que eles acabam por aumentar o custo de transportes e dos combustíveis para o consumidor, pressionando preços para cima.
Como sempre, a aula zero que aprendemos em Finanças se mostra presente: não existe almoço grátis! Há, sim, um custo que a sociedade precisará arcar em prol de uma matriz energética mais sustentável.
Link do artigo publicado no Valor Investe: https://valorinveste.globo.com/blogs/carlos-heitor-campani/coluna/o-que-sao-os-titulos-cbios-negociados-na-b3.ghtml
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