Como o diesel verde pode ser inserido na matriz energética brasileira e assim contribuir com a redução das emissões de carbono
Artigo publicado originalmente no site Valor Investe, elaborado por Camila Affonso e Joseph Boukai, do Leggio Group, em parceria com o colunista Carlos Heitor Campani.
Olá, pessoal. O artigo de hoje foi coescrito com a Camila Affonso e com o Joseph Boukai, respectivamente sócia e consultor do Leggio Group. Meu objetivo é compartilhar nesta coluna temas relevantes e contar com o conhecimento específico de experts (nesse caso, do mercado logístico e de energia). Deixo o convite para você se conectar a mim (@carlosheitorcampani) e a eles nas redes sociais.
Em setembro deste ano, no dia 14, foi assinado o Projeto de Lei 4516/23, conhecido como o “Programa do Combustível do Futuro”. As ações propostas visam fomentar a mobilidade sustentável com baixa emissão de carbono, contribuindo desta forma para que o Brasil alcance os objetivos globais de redução de emissão de gases do efeito estufa (GEE). O texto aborda várias questões que se unem no sentido de descarbonizar a matriz energética do sistema brasileiro de transportes, especialmente o rodoviário e o aéreo, promovendo a industrialização nacional e o aumento da eficiência energética dos veículos.
De acordo com o Ministério de Minas e Energia, este novo projeto propõe 5 principais mudanças, as quais estão listadas a seguir.
1. Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV): este programa visa promover a produção e adoção do Combustível Sustentável de Aviação (SAF, na sigla em inglês). De acordo com a nova diretriz, os operadores aéreos têm a responsabilidade de diminuir as emissões de dióxido de carbono em pelo menos 1% a partir de 2027, buscando uma redução total de 10% até 2037. Esse decréscimo será alcançado por meio do aumento gradual da proporção de SAF no querosene de aviação convencional.
2. Programa Nacional do Diesel Verde (PNDV): o PNDV faz parte da iniciativa para a transição energética e a diminuição da dependência externa de diesel derivado de petróleo, através da incorporação gradual do diesel verde à matriz de combustíveis do país. Para determinar a porcentagem obrigatória de adição ao diesel convencional, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) analisará as condições de oferta do produto, considerando a disponibilidade de matéria-prima, capacidade e localização. Além disso, o CNPE deverá avaliar o impacto da participação mínima obrigatória no preço para o consumidor final e a competitividade nos mercados internacionais do diesel verde produzido internamente.
3. Alteração do percentual de mistura de etanol na gasolina: um outro aspecto importante do projeto envolve diferentes limites superior e inferior para a proporção de etanol anidro na gasolina. O texto modifica o índice mínimo para 22% e fixa o índice máximo em 30% (desde 2015 esta proporção se encontra em 27,5%), sujeito à confirmação de viabilidade técnica. A adoção de percentuais mais elevados faz parte da estratégia para aumentar a octanagem do combustível brasileiro, promovendo um novo ciclo de aprimoramentos nos motores de combustão interna. Essa medida possui outro efeito positivo na medida em que o etanol contribui para a redução do preço da gasolina para o consumidor.
4. Regulamentação dos combustíveis sintéticos: o projeto igualmente estabelece as diretrizes regulatórias para os combustíveis sintéticos no Brasil, com a responsabilidade de regulação atribuída à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP. Internacionalmente conhecido como “e-Fuel”, esse tipo de combustível representa uma das abordagens adotadas globalmente para diminuir as emissões de gases poluentes provenientes dos combustíveis fósseis. Isso contribui para aprimorar o desempenho ambiental dos motores a combustão durante a transição energética, sem a necessidade de modificar peças ou componentes
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5. Regulamentação da atividade de captura e estocagem de dióxido de carbono: o projeto de lei oferece uma contribuição significativa para a transição energética ao apresentar um projeto de regulamentação para a realização das operações de captura e armazenamento geológico de dióxido de carbono, com a responsabilidade regulatória também designada à ANP. Isso possibilitará a captura de gases de efeito estufa da atmosfera e sua injeção em reservatórios subterrâneos.
O documento ainda propõe a integração entre a Estratégia Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), o Programa Rota 2030 - Mobilidade e Logística e o Programa Brasileiro de Etiquetagem (PBE Veicular). A abordagem a ser empregada consiste na Avaliação do Ciclo de Vida completo do combustível (“do poço à roda”), visando avaliar as emissões dos diversos energéticos utilizados nos meios de transporte, abrangendo as fases de geração de energia, extração, produção e uso do combustível. Essa integração busca reduzir as emissões de dióxido de carbono equivalente em todo o ciclo, com uma relação custo-benefício mais vantajosa segundo o Ministério de Minas e Energia.
Vamos agora analisar e aprofundar alguns fatores importantes em relação à inserção do diesel verde na matriz energética brasileira. Inicialmente, devemos ter em mente que existem três principais combustíveis que podem ser utilizados nos motores a diesel. O primeiro, e mais comum, é o diesel fóssil, extraído nas colunas de destilação das refinarias. Este é o produto mais utilizado em transportes de cargas por rodovias e ferrovias, na agricultura e na indústria, e em parte do transporte público em grandes centros urbanos. O óleo diesel responde por 48% da matriz veicular brasileira (fonte: ANP). Em seguida, temos o biodiesel, produzido através do processo de transesterificação de triglicerídeos (oriundos de óleos vegetais ou da gordura animal). Desde 2005, o Brasil adota o uso compulsório de biodiesel adicionado ao óleo diesel. O percentual obrigatório da mistura de biodiesel começou em 2% e atingiu 12% neste ano.
Por último, e foco da análise deste artigo, temos o diesel verde (ou diesel renovável), um biocombustível produzido através do processo de hidrotratamento (HDT) de triglicerídeos ou ácidos graxos. Este também é conhecido como HVO (Hydrotreated Vegetable Oil), o qual é um termo mais científico e específico para o óleo vegetal hidrotratado. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o HVO é hoje o terceiro maior biocombustível em volume produzido no mundo e sua produção cresce a uma taxa mais rápida que a do etanol e do biodiesel à base de ésteres.
Em relação à sua composição, o diesel verde é quimicamente semelhante ao diesel de petróleo e pode ser usado em sua forma pura como um combustível “drop-in” (que não requer alteração na logística ou nos motores para sua utilização) ou misturado com diesel de petróleo ou biodiesel em proporções variadas. Assim, comparado ao biodiesel, o diesel verde é um produto melhor para ser misturado ao diesel tradicional de petróleo. Por ser formado das mesmas moléculas do diesel fóssil, diferentemente do biodiesel, é de se esperar menos problemas de compatibilidade.
Em relação aos seus custos, o diesel verde requer um investimento inicial (Capex) elevado, mas que pode ser reduzido, por exemplo, pela utilização de instalações antigas de refinarias desativadas. Quando comparado com o biodiesel, ambos Capex e Opex do HVO são maiores.
De maneira ilustrativa, para uma usina de 100 milhões de Litros de produção destes biocombustíveis, o CAPEX estimado seria de R$ 63 milhões e R$ 400 milhões para o biodiesel e HVO, respectivamente: aproximadamente 6,3 vezes mais caro. O HVO apresenta vantagens e desvantagens em relação ao biodiesel e ao diesel fóssil. Por possuir qualidades técnica superiores (explicitadas nas vantagens da tabela abaixo), o seu preço deverá ser o maior desafio para a sua implementação. O quadro abaixo apresenta um comparativo das vantagens e desvantagens do diesel verde.
Há três caminhos potenciais para o aumento de produção do diesel verde:
1) Construção de infraestrutura exclusiva para a sua produção;
2) Coprocessamento em refinarias já existentes (com possíveis expansões);
3) Reativação de plantas de HDT para sua produção ou coprocessamento.
As duas últimas formas listadas parecem ser mais viáveis economicamente, tendo em vista o menor Capex relativo e melhor distribuição do Opex e já contam, inclusive, com projetos existentes. A opção de reativação de plantas de HDT deverá ser mais comum nos EUA, por exemplo, onde muitas refinarias e estações de tratamento foram desativadas nos últimos anos.
Em relação à competitividade do diesel verde, é válido ressaltar que a expansão de um combustível dentro do mercado depende de diversos fatores, tais como a demanda geral para transportes, custos e políticas específicas que influenciem sua região de atuação. Políticas governamentais costumam ser o principal impulsionador da expansão de um combustível. Por exemplo, as políticas de biocombustíveis do Brasil combinadas com a crescente demanda por gasolina e diesel impulsionam o uso de biocombustíveis, uma vez que é necessário a adição destes nas proporções estabelecidas por lei nos combustíveis fósseis.
O diesel verde entra no mercado como uma opção de combustível para diminuir a emissão de carbono, portanto é considerado concorrente do diesel convencional e não do biodiesel utilizado na mistura obrigatória. Atualmente, o governo brasileiro discute uma minuta para estabelecer a participação, em igualdade de condições, de qualquer tecnologia de produção de biocombustíveis na parcela obrigatória de biodiesel no óleo diesel B (denominação do diesel fóssil já misturado ao biodiesel). Com isso, os percentuais de mistura obrigatória de biodiesel ao diesel poderão ser cumpridos também com o uso dos novos produtos.
Assim, seria possível atender ao B10 (mistura com 10% de biodiesel e 90% de diesel), por exemplo, em parte com o diesel renovável, tornando o diesel verde concorrente do biodiesel utilizado atualmente. Entretanto, os projetos de livre concorrência entre as rotas tecnológicas não são unanimidade no governo e na ANP, além de sofrerem uma grande pressão do setor de biodiesel, que é contra a competitividade do diesel verde com o biodiesel e acredita que eles devam ter mandatos próprios de mistura obrigatória ao combustível fóssil. Então, por exemplo, mesmo que seja adicionado ao diesel 5% de diesel verde, ainda é necessário a adição de 10% de biodiesel, tornando ele um diesel B10R5, o que não tornaria o diesel verde substituto do biodiesel.
O Brasil possui um grande potencial de produção de fontes de matérias-primas renováveis para a produção de diesel verde, tais como óleos vegetais, gorduras animais e resíduos agroindustriais. Isso pode diferenciar o país no mercado global de diesel verde e aumentar a demanda interna pelo produto. Não obstante, sua posição no mercado global ainda dependerá de outros fatores, o que inclui sua disponibilidade, custo de produção e distribuição, regulamentação ambiental e a aceitação do público.
Este novo projeto de lei representa um passo importante na promoção de práticas mais limpas e na diversificação da matriz energética do país. Ao incentivar o desenvolvimento de tais fontes, o Brasil não apenas atende às demandas globais pela redução de emissões, mas também investe no crescimento econômico sustentável e na segurança energética a longo prazo. Contudo, é crucial que a implementação do projeto seja acompanhada por uma gestão eficiente, promoção de pesquisas científicas e desenvolvimento, uma vez que o comprometimento contínuo com as energias renováveis é fundamental para um futuro mais verde, resiliente e equitativo para o Brasil e para o mundo que desejamos.
Link do artigo publicado no Valor Investe: https://valorinveste.globo.com/blogs/carlos-heitor-campani/coluna/projeto-de-lei-451623-o-programa-do-combustivel-do-futuro.ghtml
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